A malandragem
com as Mps
O ESTADO DE S. PAULO
01 Junho 2015
Termos fortes já foram empregados
para caracterizar o absurdo da inclusão em Medidas Provisórias (MPs) de temas
os mais diversos e estranhos à matéria original tratada por elas. Contrabando,
monstrengo e até ornitorrinco - aquele exótico mamífero com focinho parecido
com bico de pato, rabo de castor e patas com membranas - são alguns deles. E
todos apropriados. Mas nada disso impede a maioria dos deputados e senadores de
manter essa prática, que vem de longe, como acaba de acontecer com a aprovação
da MP 668, que integra o conjunto de medidas do ajuste fiscal proposto pelo
governo.
Ela tratava tão somente do aumento
das alíquotas do PIS/ Pasep e Cofins de produtos importados. Com ela, o governo
espera aumentar a arrecadação em R$ 1,19 bilhão ao ano, sendo R$ 694 milhões só
em 2015. Recebeu nada menos do que 14 jabutis, como se diz na gíria
parlamentar, animais estranhos no ninho da proposta original. Há muitos outros
exemplos.
Em 2009, a MP 462, editada para
permitir a destinação de R$ 1 bilhão aos municípios a título de compensação por
perda de repasses do Fundo de Participação dos Municípios, recebeu tantas e tão
diferentes emendas que o então vice-líder do PSDB no Senado, Álvaro Dias (PR),
a chamou de monstrengo. Seu colega Valter Pereira (PMDB-MS) não deixou por
menos: “Essa MP mais parece a feira do Paraguai, tanto é o contrabando de
emendas nela”. Em 2011, a MP 517 chegou ao Congresso com 22 artigos e recebeu
outros 30, todos jabutis. Muitos casos parecidos poderiam ser citados.
O de agora, da MP 668, não deixa nada
a desejar a seus piores precedentes. Já pode ser considerado um dos campeões da
prática dessa esperteza que deforma e distorce inteiramente a proposta
original. Exemplo dos jabutis - ou das matérias contrabandeadas, se se quiser
variar o nome - dessa MP são a reabertura do programa de refinanciamento de
dívidas tributárias (Refis) para empresas em recuperação judicial com
parcelamento de débitos em até 120 vezes e a isenção da contribuição
previdenciária sobre valores pagos por igrejas a pastores e outros membros de
ordens religiosas.
Mas o mais estranho integrante dessa
fauna, em que se misturam jabutis e ornitorrincos, é sem dúvida o dispositivo
que prevê a construção de um shopping no Congresso, por meio de parceria
público-privada, ao custo estimado de R$ 1 bilhão. Dessa vez, os parlamentares
que se dedicam à malandragem da deformação de MPs para atender aos mais
diversos interesses, que quase nunca coincidem com o interesse público, se
superaram. Esse “parlashopping”, como já é chamado, está mesmo destinado a
prejudicar ainda mais a imagem já tão desgastada - para dizer o mínimo - do
Congresso.
Tem razão o senador Randolfe
Rodrigues (PSOL-AP) que, ao anunciar seu voto pela aprovação da MP, por causa
da importância da matéria original, afirmou que “será um escárnio se a
presidente sancionar essa proposta no momento em que faz um ajuste fiscal”.
Mais razão teria ele ainda se acrescentasse que escárnio maior foi seus colegas
parlamentares, senadores e deputados, criarem essa situação e transferirem o
problema para a presidente.
Remédio para a malandragem do
contrabando nas MPs existe. Proposta de emenda constitucional (PEC) apresentada
pelo então senador José Sarney, que estabelece um novo rito de tramitação das
MPs, para dar igual prazo de análise da matéria nas duas Casas do Congresso,
recebeu dispositivo, no substitutivo do relator da matéria, senador Aécio
Neves, que pode resolver o problema. Ele impede pura e simplesmente que
matérias diferentes da original sejam incluídas nas MPs. Já aprovada pelo
Senado, em 2011, ela aguarda formação de comissão especial para seu exame na
Câmara.
Quatro anos de espera é muito e
demonstra claramente que a maioria da Câmara quer continuar usando esse
expediente para tirar se sabe lá que tipo de proveito. Ao aceitar a prática
dessa esperteza, que agride a dignidade de seu papel, o Congresso não pode se
queixar de ser tão malvisto pela opinião pública.