O desgoverno dos recordes
Eliane Cantanhêde
02/09/2015
Ao jogar a toalha e admitir sua incapacidade para fechar as
contas, algo essencial à função de governar, a presidente Dilma Rousseff expõe
não apenas a fragilidade do seu mandato como também as intrincadas desavenças
internas. Com Dilma catatônica, pendurada unicamente no Minha Casa, Minha Vida,
ninguém mais se entende.
Qualquer decisão de governo virou uma tortura, como a última:
como Joaquim Levy (Fazenda) queria cortar gastos, Nelson Barbosa (Planejamento)
preferia aumentar impostos e Dilma não admite nem cortar gastos nem aumentar
impostos, o jeito foi... não fazer nada. Empurraram para o outro lado da rua um
Orçamento com previsão de déficit, e o Congresso que se vire para fechar contas
que não fecham.
Cá para nós, isso não é jeito de governar. Aliás, nem de
administrar uma cidadezinha de interior, uma quitanda da esquina ou a casa da
gente. É a não decisão, a não administração, o não governo, além de um
desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal. E é assim que o governo vai
pulando de encruzilhada em encruzilhada, sem levar a lugar nenhum.
Sem receita, a Saúde e a área econômica lançaram a proposta de
recriação da CPMF, mas não combinaram com ninguém. A reação foi em cadeia. O
vice-presidente e ex-coordenador político Michel Temer ironizou a iniciativa
como “burburinho” e o governo virou uma ilha cercada de irritação, na Câmara,
Senado, empresariado, setor de serviços, confederações, aposentados,
desempregados, empregados do serviço público e da área privada. Foi quase
unânime.
Com o recuo, nova encruzilhada: sem novas receitas, divulgar ou
não o Orçamento de 2016 com déficit? Levy ponderava que seria um desastre para
a já combalida credibilidade do País, iria afugentar investidores e aumentar o
risco de perda do grau de investimento. Ok. Mas qual seria a alternativa? Como
ponderou o sempre ponderado Temer, o governo não poderia mentir nem promover
novas pedaladas fiscais, com o TCU à espreita, pronto para dar um bote e
questionar as contas, as pedaladas e o próprio mandato de Dilma. Melhor não ir
por aí...
Eis, então, que este governo dos recordes colheu mais um: nunca
antes neste País o Executivo enviou ao Congresso um Orçamento prevendo déficit.
Aliás, um déficit que era originalmente de R$ 30,5 bilhões, mas, olhando com
lupa, não para de crescer - apesar do aumento de impostos de bebidas e de
produtos de informática.
Com isso, Dilma empurrou a responsabilidade pelas contas
públicas para o Congresso, o que significa jogar o governo ainda mais no colo
do PMDB num momento em que o “alguém” Temer sai da coordenação política, vive
de tititi com a turma de Paulo Skaf (Fiesp) e já não se constrange ao bater de
frente com o governo, agora por causa da CPMF e do aumento de impostos.
Num clima assim, com o governo sem comando, a Lava Jato correndo
solta e o ícone petista José Dirceu novamente indiciado, a coisa foge do
controle e explode até uma crise entre o procurador-geral da República, Rodrigo
Janot, e o ministro Gilmar Mendes (STF e TSE). Coisa raramente vista. Ao
desqualificar o pedido de Gilmar para investigar desvios na campanha de Dilma
em 2014, Janot recorreu ao mesmo argumento da militância petista, de que tudo
não passa de xororô de derrotados: “Os derrotados devem conhecer sua situação e
se preparar para o próximo pleito”. Gilmar, furibundo, acusou o procurador de
atuar como advogado de Dilma e criticou sua posição como “ridícula, de infantil
a pueril”.
É a tal história: quando o(a) presidente deixa de presidir, o
clima é de desgoverno e tudo pode acontecer. À crise política, à crise
econômica e à Lava Jato, segue-se agora o bater de cabeças dentro do próprio
governo e entre os Poderes, com Senado para um lado, Câmara para outro, o
procurador e o ministro do TSE às turras e... um Orçamento que nem inglês pode
ver. E ainda tem como piorar.
Publicado no jornal O Estado de São Paulo