Realidade paralela*
Cerca de 12 milhões de pessoas difundem notícias falsas
no Brasil – as chamadas fake news –, principalmente as de conteúdo político
O progresso tecnológico e a reorganização das sociedades
em torno de uma grande rede global têm embaralhado os outrora bem delineados
papéis de emissor e receptor como polos opostos no processo de comunicação. Em
um ambiente de ininterrupta e multifacetada interação é difícil, hoje,
estabelecer quem é quem nesse processo.
A porosidade dos conceitos de quem gera e de quem consome
informação, no entanto, não é necessariamente ruim. Quanto mais vozes possam
ser ouvidas, especialmente quando têm algo a dizer, e quanto mais amplo e
democrático é o debate sobre as questões de interesse geral, melhor.
O problema começa quando a salutar liberdade que permite
que qualquer um possa se fazer ouvir por meio das plataformas digitais não vem
acompanhada pela correspondente responsabilidade na veiculação das informações.
Pior, muitos se valem da frouxidão de controles no ambiente virtual não só para
repassar informações falsas, mas também para produzi-las.
De acordo com um levantamento do Grupo de Pesquisas em
Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) da Universidade de São
Paulo (USP), cerca de 12 milhões de pessoas difundem notícias falsas no Brasil
– as chamadas fake news –, principalmente as de conteúdo político.
O número representa cerca de 6% da população brasileira,
mas ao considerar que cada usuário das redes sociais tem, em média, 200
conexões, os autores do levantamento acreditam que quase todos os brasileiros
tomam contato diariamente com notícias falsas por meio da internet. A conclusão
dos analistas da USP é resultado de um trabalho de monitoramento de 500 páginas
de conteúdo político falso ou distorcido realizado durante o mês de junho deste
ano.
Especialistas de diversas áreas do conhecimento, das
Ciências da Computação às Ciências Sociais, convergem no diagnóstico segundo o
qual o meio digital – sobretudo as redes sociais – terá especial importância
nos rumos das eleições de 2018. Alguns chegam a afirmar que as fake news tendem
a ter mais repercussão do que as notícias produzidas e veiculadas por fontes
sabidamente confiáveis.
“No atual momento, a polarização ideológica coincidiu com
o consumo de notícias sobre política pelas redes sociais. Quanto mais manchetes
se prestam a essa informação de combate, maior é a performance delas, poluindo
o debate político”, avalia o cientista político Pablo Ortellado, um dos
coordenadores do Gpopai.
O estudo Robôs, redes sociais e política no Brasil,
realizado pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio
Vargas (FGV), destaca outro ponto igualmente preocupante para a saúde do debate
político no País. Tem sido cada vez mais frequente o recurso a contas
automatizadas nas redes sociais – os chamados robôs – para massificar postagens
que manipulam e direcionam o debate político no ambiente virtual, dando ares de
verdade a notícias falsas ou descontextualizadas e amplificando artificialmente
a representatividade social que os emissores ou beneficiários dessas fake news
essencialmente não têm.
Por um meio sub-reptício, cria-se no seio da sociedade
uma falsa sensação de apoio a um determinado candidato ou a uma determinada
proposta.
O estudo mostrou que durante a eleição presidencial de
2014, vencida por uma estreitíssima margem de votos pela presidente cassada
Dilma Rousseff, os tais robôs foram responsáveis – sozinhos – por cerca de 10%
do engajamento no debate de conteúdo político nas redes.
Não é razoável afirmar que as redes sociais,
isoladamente, tenham o poder de definir o resultado final de uma eleição, seja
no Brasil ou em qualquer outro país, tão somente por servirem como plataforma
livre para a propagação das fake news. Contudo, é inegável o papel que a
tecnologia vem desempenhando na transformação das formas como se produz e se
consome informação.
Em águas turvas, o jornalismo sério ganha mais
importância como mediador do debate público, trazendo à luz tanto a informação
confiável de interesse geral como desmascarando uma realidade paralela que
apenas a alguns interessa difundir com fins obscuros.
*Publicado no Portal Estadão em 25/09/2017
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